sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Sujidade

Com a preocupação de manter a assiduidade e o nível das publicações deste blog, estava a tentar encontrar um tema de escrita. Ocorreram-me assuntos que me tocam, como a solidão, a liberdade, a religião, os estados de alma ou as relações inter-pessoais mas resolvi escrever sobre as senhoras da limpeza.

As de modelo empresarial, não as domésticas. O exército mercenário que se levanta de madrugada, nos subúrbios, para invadir cedo os escritórios, pilhar outros anonimamente no final da tarde e ainda intercalar com umas incursões em casas particulares ou públicas. Caixas negras que emitem ou reflectem cumprimentos automatizados e impessoais. Algumas, na versão mais barulhenta, arrastam sacos de plástico enormes, na repetição do quotidiano que transforma quase tudo em normal e inquestionável. Uma profissão onde o arco-íris transnacional e multi-cultural tem cores mais vivas.

São acusadas de redundância, por limpar o que está limpo e deixar sujo o que sujo está e são as inevitáveis culpadas, ainda antes de acusadas, de chamadas telefónicas internacionais não autorizadas, valores desaparecidos e intoxicações alimentares, em julgamentos sumários influenciados por preconceitos que provam os actos por ocasião, ganância ou despeito. Incomodam quando limpam, não limpam ou perguntam se podem limpar. E possuem um único pano húmido, sendo este passado por cima de tudo: móveis, monitor e a garrafa de água.

Recentemente, por aqui, o contingente foi reforçado com contratações adicionais no âmbito da prevenção da gripe A. Nas superfícies adjacentes aos botões dos elevadores e às maçanetas das portas já se nota o seu monótono trajecto diário.

Nunca me apercebi de homens a exercer esta profissão sexista. Quando existem, esses especializam-se e seguem outra carreira, a limpar vidros, por exemplo, contribuindo para a discricionariedade. Ao ponto de se considerar que os senhores da limpeza são os que se chamam Toninho ou Cáló e assaltam vivendas durante a ausência dos donos.

Presumo que sejam instruídas a incomodar ao mínimo os restantes funcionários. E arrastam-se num solitário silêncio. No entanto, algumas, infractoras e revoltadas, falam alto nos corredores, fazem cara de poucos amigos, e acho que se acham demasiado boas para esse tipo de trabalho. Depois calam-se perante a presença de espectadores enigmáticos e guardam a expansividade para outros ambientes, mais domésticos. Antigamente, juntavam-se nas escadas a fumar, agora não se juntam na rua. Vê-se que algumas estão cronicamente cansadas e gastas.

Quando, há uns tempos, puxei conversa com uma senhora da limpeza, esta apresentou-me a sua interpretação das relações profissionais e uma versão própria das vantagens e inconvenientes da contratação directa pela empresa versus o recurso ao outsourcing.

Terminei. Agora, ao reler o texto, este soa-me a generalista e elitista. Apesar de ter tentando manter um tom respeitador e há muitos anos afirmar que as pessoas não devem ser identificadas pela respectiva profissão e eu não o gostar de o ser, fiz esta exposição redutora. Na prática, não me consigo integrar, nem converso, com nenhuma senhora da limpeza, como se fossemos assim tão diferentes e não tivéssemos temas comuns. Só mesmo na presença de catástrofes é que somos todos quase iguais. E questiono-me porque apresentei mais esta máscara, que gostaria que fosse tendencialmente transparente, e questiono-me porque escrevi mais esta frase.

Afinal, só não falei de religião. Por opção.

8 comentários:

  1. Uma vez estava no Colombo a jantar e como era normal no final levantei-me e estava a preparar para pegar no tabuleiro para colocar as embalagens no lixo, até que uma senhora da limpeza veio ter comigo com um ar indignado e disse:" a menina quer quer eu perca o emprego?". Até então nunca tinha pensado naquela perspectiva.

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  2. Achei piada ao Terminei...
    O porquê da mascara????
    Porquê que escreveste esta frase????

    SUUUUUUUrrisinhos:)

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  3. Rabodesaia:
    Há teorias económicas sobre as vantagens de ter uma equipa de operários a cavar buracos para logo a seguir outra vir tapá-los. Ou anedotas sobre subsídios a fundo perdido para incentivo ao emprego, a começar pelo meu motorista, jardineiro e cozinheiro. O nosso modelo económico alimenta-se do crescimento e parte dele é artificial.

    Susaninha:
    A máscara e a frase adicional foram, genericamente, indicações sobre os múltiplos objectivos, alguns contraditórios, deste post e à análise desses objectivos. Tenho estados de alma em que a “verdade” saltita entre as diversas motivações, levando a chamar os restantes de representação, em parte. As máscaras também se referem aos filtros que aplico em tudo o que faço. Alguns desses filtros são ocultos e fugidios, obrigando à sua perseguição, outros nem por isso.

    Obrigado pelas visitas.

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  4. Gostei da dissertação. Acho que grande parte das máscaras e filtros já vêm "acoplados" nas pessoas, são como que um acessório praticamente indispensável. Nós tendemos a aplicar mais um ou dois filtros resultado directo da nossa vivência ou da nossa vontade... o resultado nem sempre é o melhor, mas é com certeza interessante.

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  5. Pela minha visão raio x....o meu FD é um Men das dissertações...
    Eu tenho muitos inhos,por cauda do mimo e tu ??
    Sem mascaras um xiiiiiii grande:)
    SUUUUUUrrisinhos e venho visitar-te sempre:)

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  6. Susaninha: Sim, ser um men das dissertações define-me parcialmente, na forma que vou expondo por aqui, num processo que também é de auto-descoberta.

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  7. Adorei o último parágrafo!
    Pois eu cruzo-me e "convivo" todas as manhãs pelo menos com uma das da brigada da limpeza, pq tenho uma mania,mesmo mania de chegar quase 1h antes do que devo.

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