sábado, 30 de janeiro de 2010

Esquecimento

Estive a pesquisar sobre o esquecimento. Encontrei artigos sobre a memória, incluindo a tipificação, o processo químico, o mecanismo de reactivação, a imprecisão, as patologias que a afectam ou, numa abordagem menos técnica, a forma de ultrapassar vários traumas, mas muito pouco sobre a desconstrução “normal” da memória.

Tive esta iniciativa motivado pela intuição que as recordações são afixadas e mantidas com uma cola proporcional à intensidade da emoção que lhe está associada no momento da invocação, além do próprio conteúdo também estar condicionado à emoção que o ampara. Posteriormente, encontrei sustentabilidade para o meu pressentimento numa entrevista de António Damásio, “Não existe memória sem emoção”.

No extremo, perante esta dependência das emoções, as recordações têm várias versões com o passar do tempo, misturando-se com as opiniões e as posições, sendo necessário recorrer à psicologia para compreender essas evoluções, relacionando-as com aspectos como a convivência com a consciência, a interpretação de actos passados, o seguimento da ética vigente ou a adaptação a piores condições de vida.

Na “memória colectiva” aumentam as variáveis mas esta perspectiva é mais um factor para colocar em causa o registo da própria história da humanidade. “A história é escrita pelos vencedores” mas assimilada pelas novas gerações, à luz de novas perspectivas, num processo que aparentemente se repete. Hoje conhecem-se actos de manipulação, justificados por várias ideologias, revelados dezenas de anos depois, e quando se olha, ou eu olho, à distância para o passado, considera-se tudo ridículo ou simplesmente como sendo mais um detalhe sobre o assunto, que se mistura com outros pequenos detalhes, um por cada morte associada aos acontecimentos. Oscilo entre o descrédito no tipo de processo, a inocência da confiança, a necessidade de segurança, o alheamento perante a dimensão e inevitabilidade e o interesse da descoberta.

Transpondo para a actualidade, ainda na óptica colectiva, assisto, apático perante o que me cansa, a divergências nos factos das mais banalíssimas histórias jornalísticas, proporcionadas frequentemente pela incompetência ou falta de condições e evidenciadas pelas facilidades de comparação, ou com maior intencionalidade e requinte, à exploração de necessidades humanas e digladiação pela conquista de adeptos por clubes culturais, políticos, ecológicos, desportivos, éticos, religiosos e comerciais. Caricaturalmente, tudo vai funcionando, num sistema que mistura, e coloca à consideração de cada um, o essencial, o central, o secundário e o desperdício, com muitos aspectos de ridículo, à imagem da nossa existência.

Voltando ao esquecimento… estava a introduzir a relevância das emoções nos processos de memorização e esquecimento. O António Lobo Antunes diz há uns anos que vai deixar de escrever, que os últimos livros são melhores que os primeiros, que não sabe se tem mais algum livro dentro de si, que quer inovar e abominaria entrar na decadência que observou noutros autores que tanto aprecia. Questionei-me como conseguirá ele comparar os seus livros não sendo estes de assimilação imediata e simultânea, além dele próprio referir que ao acabar um livro, este deixa de lhe pertencer e não o volta a ler. Como está então apto a compará-los, se apesar de ter estado dentro dos livros na sua génese, também ele, ao longo dos anos, sofreu transformações, aprendizagens e esquecimentos. Deturpando a aplicabilidade do método científico, diria que numa observação se deve manter a variabilidade das condições limitada ao nível mais granular, para já não falar das regras de amostragem e grupos de controlo. Assim sendo, como fazer a tal análise comparativa se quase tudo terá mudado? Pode ter sido só um comentário do ALA mas deixou-me a pensar… Como é possível guardar as intensidades das emoções se já não as sentimos? Pelas recordações dos efeitos, atitudes e contaminações que provocaram na altura?

Recordo-me da minha primeira namorada, de várias ocasiões com ela e até de alguns sentimentos, mas o que já terei esquecido... Tal como não é possível provar que algo não existe, também nós não temos noção da quantidade de dados que vão ficando pelo caminho num processo silencioso, de que só temos percepção por amostragem. Sabemos que nos esquecemos quando voltamos a tropeçar numa informação mas com muitas já não nos cruzaremos. Gradualmente, pessoas, acontecimentos, livros que me disseram muito e deixaram marcas vão-se transformando em notícias de jornal, recordações longínquas, sem intensidade comprável à da altura em que eram classificadas como boas ou más, como num filme a que assisti mas não participei.

Na vertente comportamental, observo nas pessoas que me rodeiam, da minha família, e em mim mesmo perante elas, atitudes e reacções diferentes às que assistia há uns anos. Todos nós fomos mudando, não só pelas transições associadas às doenças, traumas e envelhecimento, mas também pelo cansaço e experiências. As ligações alteraram-se e modificaram a vivência das memórias e vice-versa. Muitas vezes, no dia-a-dia, a minha família não existe, tendo essa informação de ser refrescada com a presença física, como se nessas alturas estivesse no plano (nublado) do Fernando Pessoa n’O Ano da Morte de Ricardo Reis. Gostava que essas pessoas estivessem mais presentes em mim.

Aliás, nos aspectos do quotidiano, o esquecimento imediato é bem perceptível e desertifica o cérebro, como no caso daquela ideia espectacular, que desapareceu no segundo seguinte, tornando este texto mais pobre; ou dos sonhos, a dormir ou acordado, vividos tão intensamente nos primeiros minutos da manhã para logo se irem embora se não forem registados no bloco de notas; ou num acidente, nem sequer gravado, porque estamos demasiado ocupados noutros processamentos para assegurar a sobrevivência; ou nas emoções associadas às descargas hormonais do prazer, logo de imediato sentidas como efémeras.

As recordações estão condicionadas aos sensores que possuímos, como a comunicação escrita ao vocabulário disponível. De 7 em 7 anos renovamos todos os átomos do nosso corpo e algumas recordações e emoções irão certamente com eles, nesse ou noutros processos, juntamente com parte da nossa personalidade, numa permanente aprendizagem e desconstrução, com influência nos nossos estados e actuações. O esquecimento também terá vantagens, como a de não termos presente e directamente disponível o que queremos esquecer ou não sermos esmagados pelos gritos de milhares de recordações, como se estivéssemos a ler, em simultâneo, todos as reflexões sobre pêlos púbicos registadas na blogosfera.

Carl Sagan, no Cosmos, apresentou um calendário de 12 meses onde foi compactada toda a história do tempo e mapeada a evolução do universo, desde o Big Bang até aos registos escritos da história humana, que ocupavam os últimos 10 segundos do ano cósmico, evidenciando a respectiva insignificância. Nesse plano, a luta pela imortalidade parece ridícula, não adiantando a aquisição de lugares no Céu, a gravação de nomes de beneméritos em pedra ou a imortalização através da arte ou de grandes feitos. Todos sucumbirão ao tempo, incluindo as sempre referidas baratas e bactérias, tal já como caíram muitas colunas da antiguidade ou os críticos de Colombo. No entanto, temos essa luta e talvez a grande função da arte seja dignificar o homem ou ser o triunfo possível sobre o sofrimento, a dor e a morte, neste discurso de permanente alternância entre o meu pequeno mundo a desabar e todo o restante pó de estrelas a prosseguir a sua trajectória.

Alguém tem presente, neste momento, o que é o choro convulsivo, a angústia em que não se consegue deitar uma lágrima ou o riso que provoca dores no estômago? Onde estão as músicas com que vibrei, a energia, frustrações e revoltas da adolescência, os livros que não consegui parar de ler, os sítios que visitei e algumas pessoas que amei? Recordo-me intensamente de uma noite de riso descontrolado, agarrado à barriga, na praia com amigos e das gemadas que a minha avó me fazia. Por enquanto.

Estou com frio. Vou comer qualquer coisa e dormir. O básico.

12 comentários:

  1. O esquecimento, tal como a memória (ausência de esquecimento) são dois mecanismos opostos que nos protegem e tentam manter a nossa sanidade, sendo que a memória nos dá raízes e permite construções teóricas que vão desde o passado ao futuro e o esquecimento nos isola de coisas que, inconcientemente, não querermos lembrar ou preferimos esquecer. A única forma de evitar o esquecimento é o treino da memória (no caso dos factos que já passaram e que podem ser registados por escrito ou por fotografias, por ex.) e a convivência, a presença na vida, nem que seja à distância de um telefonema ou sms (no caso das pessoas). O esquecimento também pode estar ligado à forma como vivemos nestes tempos de pressa, de imediatismo, de precariedade - é difícil reter uma ideia quando simultaneamente, ou imediatamente a seguir, o cérebro tem milhentas outras coisas que decidir, que pensar e que fazer.

    Isto sou eu a divagar, que não percebo nada destas matérias...

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  2. Does anyone remember laughter? :) Tenho ainda bem presente o choro convulsivo... e muitas angústias... por enquanto. O que fiz ontem, não faço ideia!

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  3. e a vida é esta dualidade, sem tirar nem pôr: a vontade de sentir tudo com mais intensidade, o imediatismo, a fome de sorver os dias; e a repressão, através dos mecanismos ao nosso alcance, de todas as recordações que nos façam estremecer.

    bicho estranho, o Homem.

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  4. Goldfish,
    Até acho que percebes pois sentes e fazes por teres as tuas recordações agradáveis bem presentes.

    Eva Gonçalves,
    Parece que o estado actual também condiciona as memórias disponíveis.

    momentU,
    Sim. Ou entre o querer e o perder, o entusiasmo e o desencanto, a esperança e a desistência, a ilusão e a desilusão.

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  5. as 3 tabelas vindo do boas intencoes cheguei aqui precisamente para apanhar este post. Nao e que desconfiasse de ti, mas ja tive a minha percentagem de excelentes textos que afinal eram copy paste portanto fiz uma verificacaozinha. E estou impressionado. Ha vida na Tuga :)

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  6. "Transpondo para a actualidade, ainda na óptica colectiva, assisto, apático perante o que me cansa, a divergências nos factos das mais banalíssimas histórias jornalísticas, proporcionadas frequentemente pela incompetência ou falta de condições e evidenciadas pelas facilidades de comparação, ou com maior intencionalidade e requinte, à exploração de necessidades humanas e digladiação pela conquista de adeptos por clubes culturais, políticos, ecológicos, desportivos, éticos, religiosos e comerciais."

    Man, se fosses gaja nesta altura estava tao caidinho por ti :)

    Mas nao es e amanha tenho um deserto para atravessar (Dubai-Riyadh via Mezairaa)portanto comento amanha sobre ele. Inte.

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  7. noiseformind,
    Um, dois elogios. Deste calibre. Vindos do Médio Oriente! Até passei pela verificação de plágio. Estragas-me. Obrigado.

    Desmistificando o encantamento :) adianto que não escrevo com facilidade mas muito à base de esforço e sofrimento. Por vários motivos tenho baixa rentabilidade, ao ponto de achar que não voltaria a fazer um texto longo nos próximos tempos.

    Votos de uma boa viagem.

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  8. Deixei-te uma ou outra mensagem em posts por aí...(para que não caiam em esquecimento)

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  9. Uma explicação tão cientificamente bela. É bom ler alguém que consegue transportar o domínio de um assunto apra um plano tão facilmente compreensível e tudo isto com uma certa beleza estática.

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  10. Viviane,
    Bem-vinda. Reparei e não ficarão no esquecimento, no meu referencial.

    Tina,
    Obrigado. Não é uma área que se enquadre bem no chamado método cientifico, mas mesmo esse conceito tem vindo a evoluir, tendo algumas deixado de ser classificadas como soft science. Por vezes é reconfortante conhecer um pouco das explicações dos mecanismos que nos afectam. O texto também mas serve para marcar uma etapa que não deve ficar esquecida.

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  11. Se por um lado “nao existe memoria sem emocao” e certo e sabido que a emocao pode ser, em doses brutais, nociva para a psique quando associada a certas memorias. Vizzavi, eventos traumaticos durante a infancia sao convenientemente apagados da memoria sob forma de disturbios de personalidade que se apresentam como uma sobre-denominacao do individiduo sobre o meio circundante.


    Se alguma coisa nos distingue dos bichinhos e mesmo a capacidade de nao precisarmos de incorporacao genetica para modificacoes radicais para adaptarmos comportamentos evolutivos. Por exemplo o cozinhar dos alimentos foi determinante para o consumo de carne em quantidades apreciaveis e reducao do maxilar (que suportava os dentes) e consequente ampliacao da massa encefalica (neste caso do neo-cortex). A memoria e assim a nossa vantagem supra-genetica e a sociedade foi durante muitos anos o meio comunal de transmitir capacidades nao inscritas no reportorio instintivo do individuo.

    Penso que o grande exercicio rectificativo da historia, que e a estoria contada por quem prosseguiu com ela, e a arqueologia. Por exemplo o facto de se descobrir que o Massacre de Katyn tinha sido perpetuado pelos russos e nao pelo nazis. Acho que temos vivido num periodo inconscientemente livre em termos de prossecucao das verdades das estorias que passam como estoria. Repara que a arqueologia na China para practicamente na paleontologia e historia imperial. Nao ha historia feita em arquivos do Partido Comunista Chines, por exemplo. E a “memoria negada”, por assim dizer.
    A certa altura falas de clubites culturais, que afectam a memoria via crenca do individuo participante. Mas la esta, isto deve-se a complexidade que grande parte dos assuntos requerem para se chegar a conclusoes validas. A bagagem necessaria para se ter uma posicao assertiva sobre o mundo e cada vez mais extensa. Logo a tendencia e apanhar a “ultima versao” dos media ou de um qualquer site especializado e projecta-la.


    Como e obvio ficou muito para dizer. Fico por aqui por via de trabalho, muito trabalho, a palpitar no ecran apesar das desoras (3 da manha) e do desolamento do local (um projecto em fase de inicio no meio da selva do Vietnam)

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  12. noiseformind,

    Presumo que a inibição do registo de memórias traumáticas na infância aconteça por a actividade cerebral estar toda redireccionada para uma função de sobrevivência, ou alternativamente a supressão ocorra como forma de desligar o que dói para conseguir prosseguir. Nesses casos, os distúrbios de personalidade posteriores proporcionam escapes ou emitem alertas hiper-valorizados perante padrões pseudo-associados aos eventos traumáticos, alimentando sistematicamente e desnecessariamente os órgãos decisores com a opção de fuga ou luta.

    O facto da memória colectiva, registada ou oral, nos proporcionar a vantagem supra-genética de que falas e por isso a ela recorrermos, também a torna especialmente apelativa como alvo de manipulações, por exemplo para obtenção indirecta de poder, até porque essas técnicas são conhecidas (e vão sendo melhoradas) e os instintos e emoções criados geneticamente em dezenas de milhares de gerações ainda por cá continuam, susceptíveis e desactualizados. Em Portugal, dizem-me, também tivemos memória negada, já que no tempo do Estado Novo, a história só ia até ao Marquês de Pombal, ou noutra forma de negação, a educação só era a suficiente para a gestão básica dos problemas (do campesinato ou afins), porque a capacidade de raciocínio ou questionar também proporciona exercícios rectificativos.

    O desconforto da desorientação, a habitual escolha do caminho mais fácil, a impossibilidade prática de se estar sempre a redesenhar os alicerces, o compromisso das relações, o compromisso da integração, a tal bagagem necessária para se ter uma posição válida sobre o mundo, leva à adaptação de crenças, no sentido lato, aquilo que aceitamos sem uma prova demonstrativa total, sejam as opiniões aqui reflectidas, uma notícia de jornal, a distância à Lua ou a existência de Deus. Imagino que o extremo oposto seja a agonia da incerteza absoluta. Agora o salto foi para a liberdade e depois para insanidade.

    Bons trabalhos.

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