quarta-feira, 10 de março de 2010

Catarse

Das poucas vezes que tenho de interagir com o resto da população indígena anónima, como hoje na fila para carregar o passe do metro, verifico a minha inabilidade para esse tipo de actividade. Enquanto esperava, ia observando uns jovens de boné a juntarem-se, à minha frente, a outros e outras que já lá estavam, a dar o golpe como se estivessem na fila da cantina da faculdade, e uns utentes que ditavam ordens à funcionária do guichet, que tem de aturar aquilo o dia todo, sem proferirem um bom dia, um se faz favor ou um obrigado.

Quando estava quase a ser atendido, cresceu-me um impulso praticamente incontrolável e atirei a um rapaz de vinte e pouco anos à minha frente, não sem antes o ter medido e sentir-me pronto e apto de o espancar em segundos:
- Desculpe, o senhor não está atrás de mim?
E ele, surpreendido:
- Desculpe, tem razão.
E eu, ainda em modo de ataque:
- Acho bem, obrigado.

Esta atitude deve ser resultante de mais alguma patologia, potenciada pelos anos no viveiro com o resto dos bichos. O rapaz, coitado, levou com a hostilidade derivada das minhas frustrações acumuladas e da irritação pelo contexto, numa reacção desproporcionada. As emoções são muito contagiosas e espero que ele tenha capacidade de parar a corrente de ira. Da minha parte, registo a falta de autoconsciência e autocontrolo e também de empatia pelo rapaz que só se juntou na conversa com a rapariga à minha frente.

9 comentários:

  1. A minha capacidade para lidar com essas circunstâncias também é limitada. Odeio as pessoas (bichos?) que acham que os outros são todos tansos por seguirem as regras, eles é que são os espertos. E a tampa salta-me com facilidade - se depois vejo que foi de mais também acontece pedir desculpas pelo exagero... Muitas mais, nem por isso. Como se costuma dizer, paga o justo pelo pecador.

    ResponderEliminar
  2. Goldfish,
    "Qualquer um pode zangar-se - isso é facil. Mas zangar-se com a pessoa certa, na justa medida, no momento certo, pela razão certa e da maneira certa - isso não é facil."
    ARISTÓTELES, Ética a Nicómano

    ResponderEliminar
  3. Já me aconteceu algo semelhante e senti que tinha ripostado de uma forma demasiado desproporcional à "infracção" cometida. Acontece a qualquer um, porque nos vamos "enchendo"... somos humanos.
    Abracinho

    ResponderEliminar
  4. Ontem ia comentar e depois não tive tempo... mas não é que entretanto, me aconteceu o mesmo, mas foi ao telefone, com uma operadora telefónica... o tipo não tinha culpa nenhuma, mas já era a quarta vez ontem, a me ligar para o mesmo, da mesma operadora!! Levou um pouco da minha ira coitado... mas pedi desculpa... :)Acontece...

    ResponderEliminar
  5. E uma questao de perceber que estamos a lidar com animais, nao seres humanos per se. Falam, gesticulam, conseguem utilizar ferramentas complexas mas no fundo sao apenas animais. Foi essa percepcao por volta da adolescencia que me elevou desse circulo vicioso de violencia. Nao sem que me tenha safado de algumas situacoes mais tristes. Lembro-me de uma carga que fiz sobre alguns membros de uma claque ha uns anos por estarem a insultar a minha na altura namorada em pleno estadio das Antas. Interrogado no hospital sobre porque e que um individuo sozinho carrega para cima de 6 tipos treinados na arte da violencia urbana a minha resposta foi simplesmente:


    -Os caes agem de forma diferente dos humanos quando o seu grupo e atacado por um so agressor. Enquanto que os humanos se tornam mais agressivos quando o macho alfa tomba os caes tendem a dispersar quando isso acontece.

    Satisfez o Juiz e a Policia, que devem compreender esta situacao de sub-humanidade muito melhor do que eu...

    Uma serie que muito me veio animar os dias e mostrou que eu nao estava sozinho no mundo foi Dexter. Realmente, sem os exageros do rapaz, considero-me muito proximo da forma dele organizar o seu pensamento.

    Existem os seres humanos, os verdadeiros, capazes de pensamentos complexos, vasto estudo do ambiente circundante e algo interessante para dizer ao mundo, e insiste a bicharada cativa, que tal como as formigas segue um trajecto ferormonico ao longo do dia, dia apos dia, ate que a idade ou o acaso lhes acabem com o sofrimento.

    Com solidariedade me subscrevo :)

    ResponderEliminar
  6. Tento ser uma menina crescida, não deito papéis para o chão, respeito as filas. Por um lado nunca fui uma pessoa de conflitos. Sempre preferi a adopção de uma pose muito low profile. Por outro lado, dou por mim a perceber que este tipo de atitudes acontece mais quando as pessoas se encontram "protegidas". Seja dentro de um automóvel, seja num comentário anónimo a um blog. Muitas vezes a falta de civismo junta-se à cobardia. Outras vezes, como na espera da compra de um bilhete de metro, aflora à tona de água. Como se nem a falta de vergonha na cara já existisse, vivendo-se em sintonia com a ausência de respeito relativamente ao outro, implícito na atitude...

    Beijo.
    V.

    ResponderEliminar
  7. Pois... para enfrentar o dia-a-dia é preciso tomar uma boa dose de paciência ao pequeno almoço... Por vezes paga o justo pelo pecador... por outras, tem mesmo de ser assim. Além do mais, foste induzido em erro pelo rapaz. Certamente qualquer pessoa pensaria o mesmo que tu!

    ResponderEliminar
  8. Gostei do teu texto, tudo se deve á falta de educação, principos respeito a que estamos sujeitos todos os dias.
    Bjs

    ResponderEliminar
  9. maria teresa,
    Muitas situações banais são transformadas em problemas devido ao mecanismo “embutido” (embedded) e quase automático de escalada de agressões.
    :)

    Eva Gonçalves,
    Conseguiste rapidamente recuperar o autocontrolo. Deves ter um bom treino :)

    noiseformind,
    Carregamos praticamente a mesma sopa facilitadora de sequestros emocionais que os nossos antepassados, julgamos tão longínquos, tendo-a dourado com uma quase só aparente camada de sofisticação nos últimos milhares de anos.

    O Dexter, tal como é retratado e derivado de ter passado uns dias num contentor cheio de sangue, com pouco anos de idade, ao lado da mãe morta e mutilada, parece ter quebrado as ligações entre os circuitos límbicos ancestrais e o “neo” neo-cortex, impedido o tempero mútuo habitual. Desenvolveu uma patologia, característica dos psicopatas, que separa efectivamente a emoção da razão, predominando esta última. Sem a emoção presente, é habitualmente dirigido (ou era, até ter desenvolvido o seu próprio) pelo código de Harry e impulsionado pelo único acto que o faz sentir. Como essa separação não é efectivamente biológica, como noutros casos médicos documentados, existem ocasiões de ambiguidade, úteis para a identificação do espectador com a personagem. Era uma das minhas séries preferidas.

    Acho que também existem os seres humanos conscientes que seguem o trajecto foronómico e prosseguem esse caminho apenas reflectindo sobre ele.

    V.,
    A protecção conferida pelo anonimato ou por uma multidão permite “esquecer” os códigos de civilidade, apenas aprendidas nos últimos 6 mil anos (julgo…), substituindo-os por outros mais antigos mas latentes.

    Talvez daí o fascínio que temos (tenho) por filmes pós-apocalípticos (como o recente e excelente The Road) que exploram esse regresso ao passado, sem regras, e levantam questões sobre as origens da moral e ética e a sobrevivência destas nesses cenários.

    A consciência dos mecanismos básicos, da fragilidade e da insignificância da nossa existência, individualmente e em sociedade, podia levar a teorias niilistas sobre o assunto mas também proporcionar outras visões de beleza e divertimento. Também convém recordar que a estratégia tit-for-tat, quase um “olho por olho”, ou seja uma retaliação, mas sem ressentimento, evitando posteriores escaladas não provocadas, é a mais bem sucedida experimentalmente em campeonatos de todos contra todos. É aplicada nas relações internacionais e foi desenvolvida no âmbito da teoria dos jogos (conceito matemático com aplicabilidade nas ciências sociais).

    Foram só umas divagações. Temos de continuar por cá.
    :)

    Eva,
    Eu tento não ser “qualquer pessoa” :) e realmente acho que um bom pequeno-almoço ajuda :) Já agora, também tento não me esquecer que tenho muito a aprender com todas as pessoas.

    Lilá(s),
    Na maior parte dos casos, não temos de responder na mesma moeda. Tal como as “negativas”, as emoções “positivas” também se conseguem “pegar”.
    :)

    ResponderEliminar